OS INTERESSES ESTRANGEIROS

OS INTERESSES ESTRANGEIROS

A influência da expansão do capitalismo, a partir da década de 1870, fez-se sentir no Brasil no final do século. Isto se refletiu tanto no aumento da demanda externa para produtos brasileiros, especialmente café, quanto no crescimento das nossas importações e dos investimentos estrangeiros. Numerosos bancos estrangeiros foram fundados no Brasil.

Os Estados Unidos eram os maiores consumidores do café brasileiro. Porém, suas incursões diretas no Brasil foram modestas. Apesar da crescente aproximação política, as iniciativas para aumentar o intercâmbio entre os dois países falharam, como no caso do açúcar.

Os interesses britânicos predominavam na América do Sul. No Brasil, os investimentos ingleses se dirigiam de preferência para empréstimos ao governo. Destinaram-se primeiro à liquidação da dívida externa e à expansão ferroviária. Depois financiaram obras públicas, empresas de seguro e navegação, bancos, usinas elétricas e sustentaram o preço do café. Os ingleses também tomaram parte no processo de industrialização, principalmente como fornecedores de equipamentos. As principais firmas de exportação também eram inglesas.

As medidas financeiras do governo Floriano, a guerra civil, a aproximação com os Estados Unidos e o rompimento de relações com Portugal fizeram com que os europeus boicotassem a ajuda financeira ao Brasil. Os empréstimos ingleses só voltariam a ser feitos quando um civil ascendeu à presidência.

------
Monopólio estrangeiro: mal do país

Existe corrente anti-imperialista anterior à República. Mas é após a proclamação que este sentimento se amplia, indo desde a denúncia dos males que acarreta até um combate consciente que se lhe move. Sílvio Romero, por exemplo, compreende lucidamente a ação açambarcadora dos imperialistas, como nos subtraem as riquezas (café) e que algum dia farão o mesmo com as fazendas.

A invasão da Venezuela (1902) e a questão do Acre levantam a indignação contra os ianques: Domingos Olímpio, Leão Veloso e outros mostram, depois de Eduardo Prado (1893), o cinismo e a brutalidade dos americanos; Barbosa Lima (1905) e Júlio de Mesquita (1915) temem o seu expansionismo, que se vinha dilatando cada vez mais.

Entretanto, é o caso inglês o mais discutido. A Inglaterra e a França eram os países que possuíam maiores capitais e interesses no país. Daí o combate contra o domínio estrangeiro significar fundamentalmente luta contra eles. Rui Barbosa, querendo prescindir do dinheiro estrangeiro; a campanha contra o monopólio da S. Paulo Railway, iniciada pelo senador Alfredo Ellis (1903); os ataques de Alberto Tôrres (1915) contra a espoliação de que éramos vítimas; e a programação anti-imperialista do jovem Partido Comunista (1922) representam algumas das fases desta luta.

A ninguém é estranho que as nossas indústrias nascentes acham-se todas monopolizadas na mão do estrangeiro da maneira a menos profícua para a comunhão brasileira; por isso que, além de ficarem elas reduzidas em expansão ao insuficiente desenvolvimento que lhes dão os seus possuidores, ainda os resultados desse desenvolvimento, isto é, a riqueza que tais indústrias originam não fica dentro deste país, mas transfere-se para fora dele com os seus possuidores.

Ninguém ignora que a manufatura, o comércio e o banco, esses três grandes departamentos da atividade humana, estão no Brasil na mão do elemento estrangeiro; e que a agricultura, que ainda é quase toda brasileira, já vai caindo nas mãos desses nossos senhores.

Ora, a nossa legislação, que garante a liberdade de indústrias e profissões com ab-rogação completa de privilégios e monopólios quaisquer, além de não ser praticada, refere-se tão somente ao elemento nacional, sem cogitar de nenhum modo do elemento estrangeiro; o qual fica, de tal arte, gozando de uma liberdade sem limites, que não é liberdade. Isto tem feito com que o estrangeiro se tenha apossado de todas as nossas indústrias, fazendo, não o monopólio de direito, que seria contrário à nossa organização política e que a lei não garante; mas o monopólio de fato, que é contrário ao nosso progresso e bem estar social e que a lei não limita.

Este descuido da nossa legislação não é novo: data de tempos imemoriais da Monarquia, que absolutamente não cogitava de estabelecer ou garantir a livre concorrência, cujas tendências democratizadoras e igualitárias opunham-se ao gênio centralizador da instituição monárquica.

E a República descurou completamente este fator importante da sua vitalidade, até certo ponto agravando o seu dano com uma tão vasta quão inepta naturalização de indivíduos que ficaram assim com duas pátrias, até o momento em que o imaculado Marechal Floríano Peixoto fez, com a maior audácia e o mais acendrado patriotismo a primeira tentativa de reivindicação da posse das indústrias brasileiras, devolvendo as credenciais ao ministro português e dando passaporte a todos os súditos daquele reino. Estava jogada a cartada; estava aberto o grandioso precedente; e nada mais restava do que enveredar naquele mesmo sentido com as modificações que aqui proponho, para que a nossa emancipação fosse completa e dentro de poucos anos toda a riqueza brasileira estivesse de fato na mão dos brasileiros. Infelizmente, porém, o seu sucessor, desfazendo todos os seus mais grandiosos atos, anulou também a nossa aspiração econômica, restituindo-nos de novo ao senhorio português; e hoje a indústria de transmissão, isto é, todo o comércio, tanto a retalho como em grosso, tanto interno como internacional, feito por vias terrestres ou marítimas, acha-se na mão do estrangeiro, acarretando assim todas as grandes desgraças que são o nosso flagelo e a nossa ruína.

.......................................................................................................................

Sentimo-nos peados pelo monopólio estrangeiro que nos comprime por todos os lados. O capital destinado ao desenvolvimento das indústrias que hão de futuramente constituir a nossa riqueza é de fato de estrangeiros; mas é capital nascido no Brasil da exploração das nossas riquezas naturais e da nossa mesquinha agricultura, e não capital importado para fomentar o nosso progresso.

Esse capital, posto em circulação, incrementa a produção e constitui riqueza; mas é riqueza factícia para o nacional, por isso que o estrangeiro a monopoliza, - ou seja acumulando-a em moeda corrente que fica assim aparelhada para ser retirada da produção, ou seja monopolizando as indústrias de transmissão e as de transformação, ou seja monopolizando a propriedade territorial e predial.

Ora, todo o mundo sabe que o capital é o incentivo do trabalho, e que a concentração ou a inação dele é a redução ou a compressão do trabalho; mas como o trabalho é o agente direto da produção, segue-se que a sua redução é a redução da produção e portanto o empobrecimento do país. Assim, pois, o monopólio do capital é a origem da luta entre o capital e o trabalho ou mais propriamente, o falseamento da livre concorrência, cujos benefícios, de tal sorte, ficam completamente anulados.

A iguais desastres conduzem os monopólios das indústrias de transmissão e de transformação, por isso que os preços que elas assim estabelecem estão bem longe dos que seriam dados pela livre concorrência.

.......................................................................................................................

Igual fato se dá em todo o comércio brasileiro e principalmente no Rio de Janeiro a cujo campo mais me cinjo pela natureza especial desta crítica. Todo o comércio a retalho é estrangeiro; de modo que a pressão exercida sobre algum nascente comércio nacional esmaga-o no nascedouro e estabelece como regra o monopólio, que é o falseamento da livre concorrência.

Ora esta desgraça vai afetar - de uma parte ao consumidor que gasta muito mais do que deveria com a livre concorrência, de outra ao produtor que, na impossibilidade de armazenar os seus produtos, sujeitos aos danos da decomposição orgânica que os insuficientes processos de conservação ainda não evitam, vê-se obrigado a entregá-los ao comerciante a retalho pelo preço insignificante que este lhe oferece, porque sabe que o desgraçado precisa de meios para saldar os seus compromissos e satisfazer as suas necessidades inadiáveis a fim de prosseguir na sua faina, e não tem outro mercado onde possa obter outros preços pelo fruto do seu trabalho.

.......................................................................................................................

Eu entendo que já é tempo de nos emanciparmos definitivamente da vexatória servidão em que nos conserva o elemento estrangeiro todo, o qual, apesar da nossa emancipação constitucional, ainda é o nosso irrecusável patrão.

Urge, para o nosso progresso e dignidade, que deixemos definitivamente de ser colônia européia.

Fonte: CARONE, Edgard, A Primeira República (1889-1930), 1969, DIFEL, São Paulo, pp. 158 a 161. Consultar igualmente José D'Assis Brasil, O Atentado de 5 de novembro de 1897 contra o Presidente da República, pp. 86 a 89, 90-91 92-93 e 106.

***

A Quase totalidade dos lucros da atividade econômica do Brasil vai para o exterior

É sobremodo doloroso o que vou demonstrar; mas, necessário é que a geração atual vá transmitindo às gerações vindouras certas verdades para que façam elas o que não soubemos ou não quisemos fazer. A situação do Tesouro melhorou, com efeito, em conseqüência da política financeira do governo passado; os nossos orçamentos têm se encerrado com saldos, cessando o regime do déficit, ao mesmo tempo que a elevação e a estabilidade da taxa cambial valorizaram um pouco a nossa moeda, a fortuna pública e particular, trazendo relativos benefícios ao comércio; mas, isso é quase nada ante o que nos resta de fazer.

Vivemos em um país em que os brasileiros não são em geral os detentores da fortuna particular, e no qual os lucros quase todos das múltiplas manifestações da atividade não nos pertencem, não ficam no país e, ao contrário, são transferidos para o exterior à custa de nossa produção agrícola.

Para remediar esse grande mal, que nos corrói, que retarda o nosso progresso, que impossibilita a nossa emancipação econômica, que nos escraviza à posição de colônia, necessário se faz conhecê-lo em toda a sua extensão.

Convém, pois, apreciar os recursos estrangeiros suscetíveis de emigrar, que se compõem de dividendos, de capitais colocados especialmente em apólices e dos lucros realizados pelo comércio e por empresas como sejam as companhias de seguros.

Basta lançar os olhos sobre a constituição do comércio brasileiro para verificar que sobre 100 negociantes cerca de 80 são estrangeiros. Já em 1897, na Capital Federal, havia 14.486 negociantes, dos quais apenas cerca de 3.000 eram nacionais. Em 1898, a porcentagem de estrangeiros subiu a mais de 80%, e daí para cá se tem agravado esse estado de coisas, pois que não incluo nesta estatística os estrangeiros sócios das casas nacionais. E isso que se dá no Rio, aqui na capital, dá-se em Manaus, Pará, Bahia, Recife, S. Paulo etc. etc.

Diante desse estado de coisas resulta que 75% dos lucros do comércio, quer importador, quer a retalho, passam para mãos estrangeiras, e admitindo que haja uma economia de 50%, o que é pouco, atentos os hábitos de poupança que têm as colônias estrangeiras entre nós, a soma disponível, só desta fonte de atividade, será de 37,50%.

Para que possam avaliar os que têm lido estes artigos, a ação que exerce sobre toda a economia social no Brasil o comércio estrangeiro, basta considerar o seguinte: admitindo uma despesa anual, por habitante, de 120$ ou 10$ por mês, média extraordinariamente módica e aquém da realidade, a despesa total em compras ao comércio pelos 18 milhões de habitantes, que possui o Brasil, é de 18.000.000 120$, ou 2.160.000:000$. Calculando o lucro médio em 20% ter-se-á cerca de .... 360.000:000$. Ora, se só o comércio estrangeiro representa 75%, o seu lucro será de 270 mil contos; e se admitirmos que haja uma economia de 50%, o lucro líquido, ou o capital disponível adquirido no fim de cada ano, será de 135 mil contos, prontos em sua quase totalidade a emigrar, porque a parte que aqui fica, se acaso se emprega em apólices e em prédios, os juros e aluguéis daí decorrentes também emigrarão.

Além disso, que já denota uma situação delicada, há ainda dividendos dos capitais empregados nas empresas, propriedades, ações de companhias, de bancos, de títulos públicos, lucros das especulações de câmbio, e a drenagem que por toda a parte fazem companhias de seguros estrangeiros, em tal extensão que não temos o seguro dos valores da nossa importação, dos valores da nossa exportação e até mesmo os seguros dos imóveis e de vida, pois que essas companhias nos arrancam todas as nossas economias, fruindo garantias e vantagens de que não gozam as instituições nacionais.

Por último, a República vai agravando este estado de coisas, já pela imprevidência de seus homens, que não querem olhar com atenção para isso, já porque o espírito brasileiro absorve-se nas questões políticas ou de caráter de interesse prático e econômico, que constituem hoje o nervo e o sangue de todas as grandes nações.

Como em Bizâncio, devoramos os anos nas lucubrações dos conchavos políticos para vencer e dominar, ou perdemos o tempo a discutir questões doutrinárias de filosofia e deixamos sem solução os grandes problemas que se ligam ao engrandecimento de nossa Pátria, à sua emancipação do estado de colônia, e se prendem à manutenção de nossa unidade étnica e de nossa nacionalidade.

Demonstrei já o avultado capital proveniente dos lucros comerciais e que emigra, e o mesmo poderia fazer para cada uma das manifestações da atividade entre nós.

Em relação a dividendos e lucros, basta dizer que, segundo um inquérito que o governo português mandou fazer, antes da queda do império, sua colônia possuía no Brasil mais da metade de todos os valores móveis e imóveis.

Este capital deve ser avaliado em mais de dois milhões de contos.

Ora, supondo que apenas a metade esteja colocada a juro de 5% ao ano, cerca de 50 mil contos, que, reunidos aos lucros líquidos do comércio, dão a soma colossal de 185 mil contos, sempre à espera de um câmbio favorável para emigrar.

Acrescente-se a isso que, hoje, grande parte do trabalho agrícola não é nacional, e aqui não fica uma larga parte do salário, exatamente porque, feita a abolição, não soubemos fazer a substituição do braço escravo pelo livre, nacionalizando o trabalho. Seja como for, é certo que estamos sujeitos a uma ação absorvente e permanente das forças vivas nacionais brasileiras, que tende a aumentar pela nossa imprevidência e incapacidade. É precisamente esta afirmação do poder monetário estrangeiro no seio de nós que dá a medida das dificuldades que haverá em reter aqui capitais sempre prestes a emigrar, porque, enquanto o comércio for constituído como está, enquanto houver toda facilidade para que, sem nada deixar-nos, as especulações sobre câmbios nos depauperem e a drenagem de nossas economias feitas por toda parte sejam transferidas para o exterior, impossível será organizar um regime monetário capaz de viver e de nos felicitar.

Não há regime monetário capaz de suportar a emigração de todos esses lucros fabulosos, e daí o dever de olharmos para a situação econômica do país com cuidado e critério, amparando tudo o que é nacional, criando óbices ao crescimento dessas remessas de toda a ordem que se fazem no estrangeiro.

Bem sei que um país novo como o nosso necessita, para progredir e aperfeiçoar a sua civilização, do concurso generoso do elemento estrangeiro. Bem sei que o homem de trabalho e de raça superior é para as sociedades a primeira e mais poderosa força econômica.

Bem sei que o elemento estrangeiro, especialmente o elemento português, o qual nos traz o trabalho e capitais, representa uma condição essencial para a nossa vida e para a nossa prosperidade. O que valem homens dessa ordem como força econômica sei eu, pela história, nos benefícios que à Espanha trouxeram os mouros e à França os huguenotes, e nos males que atormentaram a pátria de Cervantes com a expulsão dos primeiros, e a pátria dos enciclopedistas com a revogação do édito de Nantes.

Não é, pois, o sentimento nativista que me anima quando escrevo estas linhas, e sim um alto sentimento de patriotismo, que eu mesmo admiro em estrangeiros e portugueses, que aqui residem e vivem.

O que quero, o que desejo, o que entendo que devemos fazer é a nacionalização lenta e segura de todas essas forças; é a incorporação contínua de todos esses elementos, que nos vêm do exterior, por um conjunto de medidas que criem óbices à remessa para fora do país de todas as nossas economias, e que tenham o poder de ir aclimando aqui parte dos lucros, que, por sua atividade, estrangeiros e portugueses têm sabido criar.

É isso que fizeram os Estados Unidos, até mesmo com a colônia alemã, cujas qualidades de raça tão imprópria a tornam para essa adaptação.

Sou dos que pensam que grande parte dos males que sofremos vem da circulação fiduciária viciosa e da natureza da moeda que possuímos; que o maior número das desgraças que nos têm atormentado provieram da crise financeira que assoberbou o Tesouro, as instituições nacionais de crédito, a nossa produção, enfim; mas, também estou convencido de que será impossível dotar o país de um regime monetário sadio, sem que tenhamos modificada a situação econômica atual, sem que tenhamos transformado as condições em que se exerce toda a atividade econômica no Brasil. Se para isso o tempo é fator imprescindível, também preciso é uma larga política nacionalista, que ampare o que é nosso, e dificulte e diminua esse absenteísmo que nos corrói. Que todos os nossos homens públicos estudem, pois, essas questões, porque na solução delas está a salvação da Pátria e a manutenção da nossa nacionalidade.

Convençamos todos os povos de que, além da crise econômica, que nos assoberba, não há ainda uma outra maior, para a qual não temos remédio - a crise de homens.

------
Classes dirigentes e capitalismo estrangeiro: a Mate Laranjeira

Tirante certa luta consciente contra o capitalismo estrangeiro, havia concordância e identidade entre as classes dirigentes do país e os interesses imperialistas. A aplicação de seus capitais em serviços públicos, energia, estradas de ferro, bancos, empréstimos e atividades agrícolas, traz benefício ao país. A divisão imperialista entre Inglaterra, França, Alemanha, Estados Unidos, apesar da Primeira Guerra Mundial, não cinde os grupos que mantinham o poder. É que embora haja ligações entre certos grupos e países estrangeiros, aquela rivalidade não repercute radicalmente entre n6s. Além disto, a aplicação de capitais representa facilidades de crédito à classe no poder e, em muitos casos, suborno (os exemplos são inúmeros).

O exemplo citado é típico: a Mate Laranjeira, da qual os Murtinhos são sócios, monopoliza o mate nativo em Mato Grosso. Seu imenso latifúndio, que possui exército, campo de concentração, escravos e moeda própria, vê em 1907 aproximar-se o fim de seu contrato com o Estado. A Assembléia estadual, liderada pela oposição, tenta impedir a prorrogação: mas esta é concedida até 1912, caindo finalmente em 1916. Diante desta situação e do perigo da invasão das terras Devolutas por rio-grandenses, os Murtinhos sugerem que estas, ricas em mate nativo, sejam entregues aos ingleses. Assim não haveria problemas e estes representariam estabilidade e segurança mútua.

Capital Federal, 25 de outubro de 1907.

Exmo. Sr. Amº Corel. Ponce.

Com quanto não tenha ainda recebido a carta, que espero de V. Exª explicando o motivo porque a Assembléia Estadual indeferiu o requerimento da empresa, sob a firma Laranjeira, Mendes & Cia. que recomendei aos amigos que tem a seu cargo a direção dos negócios do Estado, e V. Ex.ª em resposta a minha carta de recomendação, declara achar viável com as modificações que indicou e não afetam a essência da respectiva proposta, peço permissão para adiantar algumas considerações pertinentes ao assunto, e que me foram sugeridas por telegramas que daí recebi. Em primeiro lugar, não posso compreender como a orientação dos que têm a responsabilidade da situação dominante esteja subordinada ao que resolver a maioria dos amigos, como se pretende inculcar, pois isso importaria nivelarem-se todas as posições políticas, dando-se ao voto de cada correligionário o mesmo peso na balança das deliberações partidárias.

Ora, em qualquer agremiação política há ou deve haver um conselho diretor que, depositário da confiança do partido, tem a superintendência dos interesses comuns, e, como tal, pode pretender que suas resoluções sejam aceitas e obedecidas pelos amigos que o investiram naquele posto de confiança.

O contrário será a quebra da unidade na direção, e conseguinte anarquia e dissolução do partido. Assim pensando, entendi que o assunto a que aludi, e, de acordo com os amigos daqui que não podem deixar de ser havidos como próceres do partido, desde que lhes caiba larga parte na responsabilidade da situação, e recomendei a V. Exª como Presidente do Estado, e ao nosso ilustre amigo Sr. Cel. Pedro Celestino, Presidente da Assembléia, também membros proeminentes da coligação mato-grossense, desde que mereci a aceitação comum após certas alterações, não podia ser repelido pelo poder legislativo, que então seria o árbitro dos destinos de uma situação quando a outros cabe maior soma de responsabilidade nele, deslocando-se, assim, o centro da direção partidária. Foi, por isso, que assim me externei em telegrama que dirigi ao dito Cel. Pedro Celestino.

Acresce que a proposta submetida pela referida empresa à deliberação da Assembléia, além de consultar altos interesses do Estado, tanto no presente, como no futuro, conforme se demonstrou a meu ver cabalmente, na exposição de motivos que acompanhou, ainda viria facilitar a solução de um temeroso problema, que não pode deixar de preocupar a alta administração do Estado. Aludo à imigração rio-grandense que, de dia a dia vai se avolumando e estendendo pelo Sul do Estado, onde os adventícios tratam logo de ocupar terrenos devolutos pela facilidade que encontram, o que faz prever que, dentro de mais alguns anos, essa colônia dominará, pelo seu número e extensão, toda aquela região, constituindo por assim dizer, um Estado no Estado. E como o governo estadual, atenta a grande distância da sua sede para ali, e a dificuldade de comunicação, não terá meio para fazer sentir sua ação, a conseqüência será a possibilidade de freqüentes sedições, ou ao menos de resistência ou desacato ao poder constituído. Daí a palpável conveniência de certos centros de resistência àquela perigosa expansão, o que proporcionaria muito naturalmente e sem geral suspeita, o estabelecimento das empresas que se propunha fundar a Comp. Laranjeira; e seriam exploradas por uma companhia sucessora, organizada com capitais ingleses, pois as terras devolutas cedidas por compra ou arrendamento passariam a ser ocupadas pelo pessoal da sociedade anônima e assim não estariam à mercê dos primeiros ocupantes na corrente imigratória rio-grandense, que teriam de respeitar a posse mantida por uma companhia estrangeira poderosa que no caso de conflito, poderia provocar por via diplomática, a intervenção federal. Ocorre, assim, que a nova companhia tinha também em vista custear uma força armada criada pelo Estado para operar o policiamento da região em que tivessem de estabelecer as empresas. No entanto, é provável que por causa do receio de ser recebida pelos rio-grandenses a concessão requerida, fosse ela indeferida, quando sua outorga conjuraria o perigo iminente, que assim continuará a ser pesadelo da alta administração estadual, agravando-se gradativamente com ilusórios paliativos. Não quero estender-me mais sobre tão empenhoso assunto, e oxalá eu seja um pessimista! Peço o obséquio de mostrar esta ao nosso distinto Amº Cel. Pedro Celestino a quem a faço extensiva. Fico aguardando a carta de V. Exª que me trará esclarecimentos.

Com os mais cordiais cumprimentos me subscrevo.

De V. Exº Amº patrício obgº

Manuel J. Murtinho.


0 comentários:

Postar um comentário